Escritor agraciado no 25 de Abril em Matosinhos com a Medalha de Mérito Dourada e o Título de Cidadão Honorário.
A Câmara Municipal de Matosinhos recebeu com uma profunda tristeza a notícia do desaparecimento, dia 27 de abril, de Vasco Graça Moura, apenas dois dias depois de lhe ter atribuído a Medalha de Mérito Dourada e o Título de Cidadão Honorário “pelas marcas deixadas ao nível literário, pelo seu valor humano e profissional, e pela sua importância para Matosinhos”.
A distinção foi entregue a Maria Bochicchio, atual companheira, nas cerimónias de comemoração dos 40 anos da Revolução do 25 de Abril, no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
Para o Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, Dr. Guilherme Pinto, Vasco Graça Moura foi uma espécie de “Leonardo Da Vinci” dos nossos tempos. “Talentoso, multifacetado, de um rigor e de uma exigência inestimáveis, Vasco Graça Moura foi um grande amigo de Matosinhos. Deixou-nos um poema magnífico sobre o nosso Óscar Lopes, uma gota no oceano de um legado literário único”, disse.
Para o edil, atribuir a Medalha de Mérito Dourada a Vasco Graça Moura no dia que o país recordou os 40 anos do 25 de Abril foi “uma homenagem justíssima”, pois “muito do seu trabalho se deve à conquista de Abril e aos seus valores”.
Como tal, será apreciado na próxima reunião de câmara um voto de pesar pela morte de Vasco Graça Moura, aos 72 anos, vítima de doença prolongada.
Escritor, poeta e tradutor português, natural do Porto. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, atividade que chegou a exercer, foi Secretário de Estado da Segurança Social do IV Governo Provisório e Secretário de Estado dos Retornados do VI Governo Provisório.
Nomeado diretor de programas da RTP, em 1978, nesse mesmo ano passou à Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cuja área editorial administrou até 1988.
Entre 1988 e 1995 foi Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Eleito deputado em 1999, foi vice-presidente da comissão de cultura do Parlamento europeu, onde esteve até 2009. Desde janeiro de 2012 que era presidente do Centro Cultural de Belém.
Foi autor de obras de ensaio, poesia, romance, e ainda de traduções. Paralelamente, desenvolveu uma ampla intervenção pública como comentador e analista político. A sua obra iniciou-se em 1963, com o título Modo Mudando, a que se seguiram, entre outras, O Mês de Dezembro (1977); Instrumentos para a Melancolia (1980); Nó Cego, o regresso (1982); Os Rostos Comunicantes (1984), A Furiosa Paixão pelo Tangível (1987), O Concerto Campestre (1993), Sonetos Familiares (1994), Poemas Escolhidos 1963-1995 (1996), Poemas com Pessoas (1997), Uma Carta no Inverno (1997, prémio de Poesia APE/CTT de 1997) e Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas (1998). Entre os seus ensaios encontram-se David Mourão-Ferreira ou a Mestria de Eros (1978), Camões e a Divina Proporção (1985), Os Penhascos e a Serpente e Outros Ensaios Camonianos (1987), Várias Vozes (1987), Retrato de Isabel e Outras Tentativas (1994) e Contra Bernardo Soares e Outras Observações (1999). Na sua vasta obra encontramos igualmente obras de ficção, entre as quais, Quatro Últimas Canções (1987), Naufrágio de Sepúlveda (1988), Partida de Sofonista às Seis e Doze da Manhã (1993) e A Morte de Ninguém (1998).
Vasco Graça Moura escreveu ainda uma peça de teatro (Ronda dos Meninos Expostos, 1987), um diário (As Circunstâncias Vividas, 1995) e as crónicas de Papéis de Jornal (1995).
Distinguindo-se publicamente como tradutor, amplamente consagrado, as suas traduções da Vita Nuova e da Divina Comédia de Dante (1995) mereceram-lhe a atribuição do Prémio Pessoa, em 1995. Em 2000, publicou Poesia 1997-2000, seguido do romance Meu Amor, era de Noite (2001).
Na sua publicação Uma Carta no Inverno, escreveu “Um Senhor de Matosinhos”, um poema sobre Óscar Lopes.
um senhor de matosinhos
andava eu no liceu: no salão nobre
dos paços do concelho em matosinhos,
um professor, o óscar lopes, vinha
mostrar à noite que a literatura
importa a toda a dignidade humana.
iam autores ouvi-lo, jornalistas,
estudantes, gente que ali morava
e outra que do porto em carro eléctrico,
o “um” para leixões, o “dezasseis”,
passando à carvalhosa, vinha sempre,
lá estavam joão guedes, tonitruante,
e júlio gesta, afável e risonho,
manuel dias da fonseca, mais calado,
augusto gomes e suas lentes grossas
a enevoar-lhe o olhar de ver as praias
rasas de cinza e luto, com vareiras
por trágicos naufrágios ululando,
o egito, que então já se escrevia
com os poetas todos deste mundo,
o eugénio, de cachecol esvoaçante,
a modelar os gestos e os ditongos
medindo mãos e frutos, depurando
sílaba a sílaba, a sua incandescência
devia ser outono, ou mesmo inverno,
e fazer frio, e não faltava um torpe
sujeito de soslaio e bloco-notas,
tomando apontamentos com minúcia,
que a subversão quanto mais culta mais
impalatável era. fuzilavam-no
amigas minhas com o olhar, ficavam
mais belas só por essa exaltação
contida e faiscante de amazonas,
foi quando eu soube que as mulheres sabiam
resistir por instinto e se tornavam
mais agilmente elásticas no corpo,
mais livres e arriscadas nos seus gestos,
e no limite a cor afogueava-as,
e tão fulva energia em nenhum verso
coube jamais, que eu saiba, então na sua
voz calma e portuense, óscar falava
dos livros, dos autores, como quem trata
de assuntos de família e os desarruma
para os mostrar melhor, e acontecia
que isso era irrepetível e sem pompas,
como outra intimidade ao nosso alcance:
é sempre desconforme a literatura.
é mal-estar, princípio de prazer,
é trabalho forçado e liberdade
e um modo mais verbal de estar no mundo,
e nesse mar óscar lançava as redes
da pesca milagrosa, aquela terra
tinha essas tradições mais literais,
orlas de oralidade e maresia,
e embarcávamos todos na traineira
e era outra vez o senhor de matosinhos
com ex-votos à roda: impaciências
de passado e presente na palavra
e, entre a vida e a morte, o seu fulgor
em que, por crespas ondas, falar era
também filosofar e rebeldia.
tinham saído alguns discos recentes,
gravados por poetas: eu recordo
a voz do régio num, que achei roufenha
dos ensimesmamentos presencistas,
e vozes de combate que também
prestavam para pouco, mas sabia
tão bem partir a louça no salão
daquela edilidade, assim nas barbas
de toda a gente, era porém mais justa
a medida de que óscar nos falava
pois fazia pensar e punha em causa.
e alguém pedia às vezes um poema
quando a noite avançava e alguém dizia
outras coisas em código e ficavam
depois pequenos grupos à saída
como em cinemas de província, como
quem tem mais a dizer e veio vindo
devagar até aqui e aqui se encontra,
à espera de outro eléctrico ronceiro,
e vai falando tempos esquecidos,
sem pressa e sem vontade de ir embora.
Vasco Graça Moura, Uma Carta no Inverno, Quetzal Editores, 2.ª ed., 1999
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